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Início – primeira vez – origem – princípio – o melhor de mim – o pior de mim

[Uma personagem.
Ambiente com baixa luminosidade.
Ao longo da narrativa, outros três personagens iluminam com suas lanternas o espaço e o corpo daquela personagem.
Uma caixa metálica fosca, velha, com rodas quadradas.]




A primeira vez foi num parque de diversões. Até que enfim a hora marcada do trem.
Mas aquilo me soou estranho. O que na minha imaginação poderia ser prazer e emoção tornou-se apenas um compromisso. O gostoso da brincadeira é o brincar. Que coisa estranha marcar, agendar a data e o horário para ir se entreter.


- Você tem direito a cinco fichas. Pode escolher seus brinquedos.


Isso era uma das partes geradoras de todo aquele superficialismo. Eu não precisara nunca de fichas ou ingressos para me divertir.
E como poderia parar no meio da brincadeira, caso não mais quisesse continuar? Nem pensava em imprevistos possíveis, mas no simples desejo de não querer ir além.
É certo que quem não aguentasse poderia gritar, espernear-se, chorar, e então eles parariam. Mas a questão não era o não aguentar.
Aguentar: isso eu faria. Já havia aguentado muitas coisas até ali.


Segui a indicação, o comando. É assim que funciona: o jogo e suas regras.
- Ele está quase chegando.


Até ali a ideia já estava formada, o trem já estava construído, os trilhos já estavam traçados.
Ainda a ingenuidade de que tudo acabaria bem.
A espera durou menos do que a expectativa da chegada.
Enfim, o primeiro contato.
Daquilo tudo que era imaginalizado, apenas uma pequena caixa metálica com rodas _ quadradas.
Sentei-me e senti-me. Por tudo. Por tão abobalhada ilusão de que de fato vivenciaria minutos em um trem.
O título do divertimento-produto leva o nome de Fantasma. Fantasmagórica era a minha sensação diante de teias de algodão, monstros com cara de máscara de bailinho à fantasia.
O que também me incomodava era a passagem de um cômodo para outro.
Aquilo já quebrava qualquer tentativa de abertura para experimentações. Um bocado de TNTs pretos, em fatias.
Luminosidade baixa.
Gritos estridentes.
Música, não. Aliás, nem ruídos...


A partir dali nada mais escaparia. Como o primeiro tombo de bicicleta, como a primeira vez de uma coisa que você não quer que se repita. Não havia mais saída, além da indicada em uma placa luminosa.
Mas ali a saída era de emergência.
A gente não tem saída de emergência em situações de fogo, água e ar.
O fogo agora me inundava em meio às chamas de água. O ar já não mais existia.
Nada mais escaparia.
Eu não queria fantasmas inventados, gritos combinados, um trilho único.
Não haveria mais escolha, embora nada indicasse certeza.


Fechei meus olhos. Minhas mãos sobre meu colo. Meu corpo em busca de mim mesma em meio aos solavancos da lataria nos trilhos que te levam a lugar qualquer.


A partir dali as direções e os sentidos se perdiam. Nada mais nortearia as minhas imagens, os meus fantasmas, os meus gritos.
Buscava o silêncio dentro de mim nos intervalos da minha pulsação.
Nada concreto, nem terminado.
A locomotiva e os trilhos a serem construídos.


A visão nada mais podia enxergar de real. A escuta era o que estava aberta.
Pareciam que centenas de programas de rádio gravados eram exibidos ao mesmo tempo.
Tantos códigos, inúmeras falas que se perdiam na quantidade de informação. Cada vez mais informação, cada vez mais, o processo de emudecer-se.


Havia uma lógica da perda dos sentidos.
Aquilo que mais fosse contagiado, mais rápido seria extinto.
Já eram dois, os meus perdidos: a visão e a audição.


O gelo seco perfurava minhas narinas, secava minha garganta.
Sentia que estava mais próxima de um silêncio meu e do tempo. O espaço começava a ser sentido realmente quando, ao toque de tecidos podres, minha pele começou a se descamar. Tudo se dissolvia na mais romântica lentidão.


A não sensação só era possível por um dia ela ter se feito sentida.
Transcenderam-se as vozes. Não há quem não as escute ao entrar ali.
Da carcaça geraram-se as dissoluções dos sentidos. Desmaterializou-se um corpo. Nos ambientes, as partes explodidas.
Não há castigos nem pecados.
Os vagõezinhos entram todos os dias. Mas poucos desejam encontrar seus fantasmas.

Comentários

  1. E teve uma época que a gente falava de "trem"!

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  2. Nossa, Laise,
    de onde você tirou este texto, você que escreveu?
    muito bom.
    Eu entrei num túnel escuro, diposta a enfrentar todos os medos.
    Valeu.
    beijos
    Sheila

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  3. Ei, Sheila. Esse texto é uma nota da autora aqui! De um dos processos nas teatralidades da vida! Obrigada pelo olhar e pelas palavras.
    Beijos.
    La

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