Pular para o conteúdo principal

Barbari(e)dade

    Na antiguidade, bárbaros eram os povos que não falavam a mesma língua dominante. O estrangeiro, o outro. Depois vemos esse sentido circular em torno daquele que não é civilizado, rude. Em tempos de pandemia, talvez retornemos a esse lugar: não estamos falando a mesma língua. Quase uma média de 1000 mortos por dia no Brasil em decorrência do Coronavírus e os discursos negacionistas circulando em plenitude. Circulando mesmo pelos corpos. Gente na praia, nos bares.

    Uma barbaridade. O vírus pode realmente afetar tanto quem é jovem, com histórico de atleta, quanto pessoas com alguma comorbidade. Ou seja, podemos todos ser afetados por ele, o invisível e inaudível. No entanto, é fato também que o acesso e as formas de tratamento não são definitivamente os mesmos. Li relatos de pessoas que foram transferidas de helicópteros (com unidade móvel de UTI) do Nordeste para os melhores hospitais de São Paulo. Ouvi relatos de gente que pôde se isolar em casa de campo, para que não afetasse a família, e que teve todos os cuidados por meio dos serviços dos empregados domésticos. Quase um “spa”. Acompanhei a história de uma pessoa querida que foi ao hospital numa situação de emergência por outro motivo de doença, infectou-se e, dentro de algumas poucas semanas, veio a óbito. Em julho, um daquela estatística tão divulgada (e já banalizada por tanta gente) tinha rosto, história e memória conhecida. Mais um. Menos um.      

    Uma barbárie. E é com profunda tristeza e sentimento de impotência que passo os olhos pelas notícias e pelas ruas e vejo pessoas sem máscaras, sem os cuidados necessários. Fico perplexa com o fato de as pessoas terem se abalado tanto com as mortes na Itália, com as ruas vazias da Europa, no início do ano, e, aqui, nesta terra abandonada, estarem a seguir suas vidas como se nada estivesse acontecendo. Mais do que nunca, Theodor Adorno é atual quando fala que é preciso pensar em uma educação que seja contra qualquer tipo de barbárie. Falo da educação, formal ou informal, porque o que tenho visto são pessoas educadas, no entanto, com o sentimento de negação da existência do outro. O outro não tem a menor importância para elas, pois, nesta lógica, salve-se quem puder. Eis os novos bárbaros. 

Comentários

  1. Muito boa e pertinente sua fala, Laíse. Grata por compartilhar.

    ResponderExcluir
  2. Me vi falando e pensando exatamente o que você escreveu, Laise! Belo e necessário texto!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Nos reconhecemos nas palavras também, Di... Beijo, querida.

      Excluir

Postar um comentário

Outras notas

Destino

Eu sou aquela coruja salva depois de um ataque olhos esbugalhados, um deles para fora. Pega por um moço que me levou a quem soubesse me tratar. Eu sou essa coruja cuidada por um, por outro e outro Que pensei que pudesse levantar voo e que no menor desaviso paralisei no ar. Eu sou a coruja que o gavião veio e pegou. Do destino não se voa. Para Gustavo. Depois de várias histórias animalescas... coruja, maritaca, borboleta, periquito, gavião, gato, rato.

Pessoas na agenda

Esta é uma historinha. É sobre a agenda Charme , da Tilibra, capa dura, presente de Natal. Eu queria nada no Natal de 94/95 e ganhei. Já que aquele nada ganhou materialidade, nele registro pessoas conhecidas, vividas, vivas e mortas. Um comentário sobre isso: Uma agenda de 1995 tornou-se o lugar onde anoto os aniversários de pessoas que conheço na vida. Depois há quem diga que não me esqueço de aniversário de ninguém. Pudera... Todo mundo que me fala a festiva data, eu anoto. Às vezes, chego bêbada em casa, abro a gaveta, pego a agenda, caneta e escrevo. Não raras vezes, não me lembro como descobri tal data de tal pessoa. Mas confio. Sempre que liguei para dar os parabéns, mesmo não tendo certeza, acerto. Há quem diz: Nossa! Você lembrou! Sou educada e hipócrita: não tem como esquecer... Só não digo que não esqueço por causa da agenda de 1995... Mas tudo bem, hoje em dia tem orkut, facebook, twitter, wikipedia.  Não é difícil tarefa descobrir ou ser lembrada de anive...